O Martírio de Policarpo de Esmirna
Posted: quinta-feira, 3 de março de 2011 by Sung Ho in Marcadores: História da Igreja
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Ontem, na aula de História da Igreja, revisitei um texto que já conhecia. É sobre o martírio de Policarpo de Esmirna, ainda no segundo século da Era Cristã. Ainda hoje, temos pessoas no mundo que morrem por Cristo. Leia e reflita. Como disse Tertuliano, o sangue dos mártires faz a igreja crescer.
Policarpo morreu mártir naquele tempo, (a data do martírio, que Eusébio, na Crónica, coloca em 177, é fixada na época de Antonino Pio) enquanto a Ásia era assolada por grandíssimas perseguições. Julgo absolutamente necessário contar o relato da sua morte, conservado ainda hoje por escrito. Existe, com efeito, a carta dirigida às dioceses da região em nome da Igreja de que ele estava à frente, que assim diz a seu respeito: |
"A Igreja de Deus que reside em Esmirna à Igreja de Deus que reside em Filomélio e a todas as dioceses da santa Igreja católica espalhadas em todo o lugar. Multipliquem-se a misericórdia, a paz e o amor de Deus Pai e do nosso Senhor Jesus Cristo. Escrevemo-vos, irmãos, a propósito daqueles que sofreram o martírio e do bem-aventurado Policarpo, que com o seu martírio como que selou e concluiu a perseguição". |
Portanto, antes da história de Policarpo, nela se narram as dos demais mártires, descrevendo a firmeza por eles mostrada perante os tormentos. Diz-se, com efeito, que os espectadores presentes no circo ficaram pasmados a vê-los: lacerados pelos flagelos até às veias e artérias mais profundas, ao ponto que se chegou a ver até as partes mais escondidas deles; estendidos sobre abrolhos e pontas aguçadas; e por fim, após ter sofrido toda a espécie de suplício e tortura, eram dados de comer às feras. Contam que se destacou em particular o corajoso Germânico, que superou com a graça divina o medo inato da morte física. E enquanto o procônsul queria dissuadi-lo, alegando a sua idade e suplicando-lhe, já que era ainda tão jovem e estava na flor dos anos, que tivesse piedade de si mesmo, ele não hesitou e com coragem atraiu a fera sobre si, quase obrigando-a e excitando-a, para que o libertasse quanto antes desta vida injusta e iníqua. Perante a nobre morte deste, a multidão inteira ficou estupefacta pela coragem do pio mártir e pelo valor de toda a estirpe cristã, e começou a gritar em uníssono: "Fora com os ateus! Busque-se Policarpo!". A tais gritos seguiu-se um grande tumulto, e um tal, frígio de estirpe, de nome Quinto, que tinha chegado recentemente da Frígia, vendo as feras e todos os outros suplícios que o ameaçavam, desanimou e cedeu, renunciando por fim à salvação. O texto da supracitada carta refere que ele se apresentou em tribunal juntamente com outros, mais por presunção, que por devoção: a sua queda ofereceu portanto a todos um claro exemplo de como não se deviam enfrentar semelhantes riscos sem convicção. Assim morreram estes homens. |
Quanto ao mui admirável Policarpo, ao ouvir estas coisas primeiramente permaneceu calmo, mantendo-se firme e íntegro como sempre, e quis ficar na cidade, mas depois obedeceu aos companheiros que lhe rogavam e suplicavam que se afastasse, e retirou-se para uma herdade não longe da cidade, onde viveu com poucos companheiros, não fazendo mais, noite e dia, que perseverar nas orações ao Senhor. Orando, invocava e implorava a paz para as Igrejas de toda a terra, como tinha sempre sido seu hábito. Três dias antes da sua detenção, teve de noite uma visão, e viu o travesseiro que estava por debaixo da sua cabeça incendiar-se subitamente e consumir-se. Ao que acordou e explicou imediatamente a visão aos presentes, embora sem predizer o futuro e anunciar claramente aos companheiros que devia morrer por Cristo na fogueira. Visto que aqueles que tinham sido encarregados dele, o procuravam com grande zelo, constrangido pelo afecto e pelo apego dos irmãos, diz-se que se transferiu para uma outra herdade; e aqui, pouco depois, sobrevieram os seus perseguidores e prenderam dois servos que encontraram ali. Por um deles vieram a saber, torturando-o, o esconderijo de Policarpo. Chegados lá a horas tardias, encontraram-no a repousar num sotão, de onde lhe teria sido possível passar para uma outra casa, mas ele não quis e disse: "Seja feita a vontade de Deus". Tendo sabido da sua presença, como refere o relato, desceu e falou com eles com um rosto dulcíssimo e tão alegre, que a esses, que nunca o tinham conhecido antes, pareceu ver um milagre, quando observaram esse homem de idade avançada pelo porte venerando e calmo, e se admiraram de tanta preocupação para prender um semelhante velho. Sem demoras ele mandou preparar imediatamente uma mesa para eles e os convidou para um abundante almoço, depois pediu-lhes uma hora somente, para orar em paz. Concederam-lha e ele, levantando-se, orou cheio da graça do Senhor, ao ponto que os presentes, ouvindo-o orar, ficaram estupefactos e muitos deles lamentaram que um velho tão venerando e pio estivesse para ser morto. O escrito que lhe diz respeito continua textualmente assim: |
"Quando terminou a oração, após ter recordado todos aqueles que tinha encontrado, pequenos e grandes, ilustres e desconhecidos, e a inteira Igreja católica espalhada no mundo, chegando a hora de ir, puseram-no sobre um jumento e levaram-no para a cidade, um sábado de festa. Encontraram-no o irenarca Herodes e seu pai Niceta, os quais, fazendo-o subir para a sua carroça, sentaram-se perto dele e procuraram convencê-lo, dizendo: "Que mal há em dizer: César senhor, e em sacrificar para salvar-se?". Ele primeiro não respondeu, depois, dado que eles insistiam, disse: "Não pretendo fazer o que me aconselhais". Então, não conseguindo persuadi-lo, dirigiram-lhe palavras torpes e o fizeram descer tão apressadamente, que saindo da carroça feriu-se na canela, mas ele, sem se voltar, como se não tivesse sentido nada, prosseguiu a pé apressadamente e de bom grado, e foi conduzido ao estádio. Aqui o clamor era tão grande, que ninguém poderia fazer-se ouvir. Mas à entrada de Policarpo no estádio uma voz desceu do céu: "Sê forte, Policarpo, e comporta-te como um homem!". Ninguém viu quem falava, mas muitos dos nossos que estavam presentes ouviram essa voz . Enquanto era conduzido, houve um grande tumulto por parte de quantos tinham ouvido que Policarpo tinha sido preso. Chegando à frente, o procônsul perguntou-lhe se era Policarpo, e visto que ele o confirmou, tentou persuadi-lo a abjurar dizendo: "Respeita a tua idade", e outras coisas semelhantes que costumam dizer, como: Jura pelo génio de César, arrepende-te, diz: 'Fora com os ateus! Então Policarpo, olhando com o rosto sério a multidão que estava no estádio, agitou para ela a mão e gemendo levantou os olhos ao céu, e disse: "Fora com os ateus!". Mas o procônsul insistia: "Jura, e te deixarei ir. Insulta Cristo". Policarpo respondeu: "Sirvo-o há oitenta e seis anos e não me fez algum mal: como posso blasfemar o meu rei, aquele que me salvou?". E o outro insistia: "Jura pelo génio de César". Então Policarpo disse: "Se te iludes que eu jure pelo génio de César, como dizes fingindo não saber quem sou eu, ouve bem: eu sou cristão. E se quiseres conhecer a doutrina do Cristianismo, concede-me um dia e fica-me a ouvir". Respondeu o procônsul: "Convence o povo!". E Policarpo: "A ti estimei digno de um discurso, porque nos ensinaram a tributar aos magistrados e às autoridades instituídas por Deus a honra que lhes compete, se isto não nos trouxer dano, mas estes não merecem ouvir a minha defesa". Retomou o procônsul: "Tenho feras. Entregar-te-ei a elas, se não mudares de ideias". Respondeu Policarpo: "Chama-as. Não mudaremos de opinião para ir do melhor para o pior, enquanto é belo passar do mal para a justiça". E o outro: "Far-te-ei domar pela fogueira, se não te importam as feras, a menos que tu mudes de ideias". E Policarpo: "Tu ameaças um fogo que queima um momento e pouco depois se apaga, porque não conheces o fogo do juízo que virá e da punição eterna reservada aos ímpios. Mas por que demoras? Faz vir o que quiseres". Dizendo estas e muitas outras coisas ainda, se encheu de coragem e de alegria, e o seu rosto se encheu de graça, assim que não só não se assustou com as palavras lhe dirigidas, mas foi antes o procônsul a ficar comovido, e mandou um arauto ao meio do estádio anunciar três vezes: Policarpo confessou ser cristão. Assim que o arauto o anunciou, toda a multidão de pagãos e de Judeus habitantes em Esmirna gritou com grande voz e com ira incontível: "Este é o mestre da Ásia, o pai dos Cristãos, o destruidor dos nossos deuses, aquele que ensina a muitos a não sacrificar e a não adorar". Assim dizendo, gritaram e pediram ao asiarca Filipe para que soltasse um leão contra Policarpo, mas ele respondeu que não lhe era permitido visto que o espectáculo das feras tinha acabado. Então puseram-se todos a reclamar com grande voz que Policarpo fosse queimado vivo. Devia assim cumprir-se a visão do travesseiro que lhe apareceu enquanto orava, quando o viu arder, e virado para os fiéis que estavam com ele, profetizou: "Devo ser queimado vivo". O que aconteceu quase antes que fosse dito, já que a multidão recolheu imediatamente das oficinas e das termas madeira e faxinas, e se entregaram a esta tarefa com brio sobretudo os Judeus, como era seu hábito. Assim que a fogueira ficou pronta, após ter tirado sozinho todas as roupas, solto o cinto, começou a tirar também as sandálias, coisa que antes nunca fazia por si, porque todo o fiel procurava fazê-lo para ser o primeiro a tocar a sua pele: por causa da sua santidade, foi de facto honrado em tudo ainda antes da velhice. Portanto se lhe puseram logo à volta os materiais preparados para a fogueira. Quando foram para pregá-lo, disse: "Deixai-me assim. Porque aquele que me concede suportar o fogo, me concederá também resistir firme na fogueira sem necessidade dos vossos pregos". Então não o pregaram, mas o amarraram. Postas as mãos atrás das costas, foi amarrado, como um carneiro escolhido de um grande rebanho em holocausto aceito a Deus todo-poderoso, e disse: "Pai do teu amado e bendito Filho Jesus Cristo, por meio do qual te conhecemos, Deus dos anjos e das potestades, te bendigo por me teres julgado digno deste dia e deste momento, fazendo-me participante, no número dos mártires, do cálice do teu Cristo para a ressurreição da alma e do corpo na vida eterna e na incorruptibilidade do Espírito Santo. Possa eu hoje ser acolhido entre eles diante de ti num sacrifício cevado e agradável, como tu mesmo me preparaste e manifestaste e levas agora a cumprimento, Deus veraz e leal. Por isso eu te louvo também por todas as coisas, te bendigo, te dou glória por meio do pontífice eterno Jesus Cristo teu Filho dilecto, e por seu meio seja a glória a ti em união com Ele no Espírito Santo agora e sempre nos séculos vindouros, amen". |
"Pronunciado o amen e terminada a oração, os encarregados acenderam o fogo, e enquanto lavrava uma grande chama assistimos a um milagre, nós a quem foi dado ver e que fomos conservados para contar aos outros o que aconteceu. O fogo, com efeito, tomou a forma de abóbada, como uma vela de barco inchada pelo vento, e circundou o corpo do mártir, que estava no meio dele não como carne que queimava, mas como ouro e prata sendo refinados numa fornalha. E nós sentimos um odor intenso como o perfume de incenso ou de outros aromas preciosos. Aqueles malvados, por fim, vendo que o fogo não conseguia consumir o seu corpo, ordenaram a um confector (o executor, aquele que na arena 'acabava' com o lutador ou a fera já ferida) ir cravar uma espada nele. Feito isto, saiu uma tal quantidade de sangue dele, que o fogo se apagou e toda a multidão pasmou com uma tão grande diferença entre os não crentes e os eleitos, um dos quais foi certamente o maravilhoso Policarpo, mestre apostólico e profético nosso contemporâneo, bispo da Igreja católica de Esmirna: toda a palavra que saiu da sua boca se cumpriu e se cumprirá. Mas o Maligno, rival astuto, adversário da estirpe dos justos, vendo a grandeza do seu martírio, a sua conduta desde sempre irrepreensível, a coroa da incorruptibilidade de que estava cingido, o prémio incontestável obtido, agiu para que pelo menos o seu cadáver não fosse recolhido por nós, malgrado muitos desejassem fazê-lo para ter consigo o seu santo corpo. Alguns sugeriram, por conseguinte, a Niceta, pai de Herodes e irmão de Alce, que suplicasse ao governador para que não entregasse o seu corpo, 'por temor' disse 'que se ponham a venerar este, esquecendo o Crucificado'. Disseram isto aconselhados e instigados pelos Judeus, que nos espiavam quando estávamos para tirá-lo da fogueira, porque não sabem que nós nunca poderemos abandonar nem Cristo, que sofreu a paixão para a salvação daqueles que no mundo inteiro são salvos, nem venerar algum outro. Porque a Ele, nós o adoramos enquanto Filho de Deus, ao passo que os mártires, os amamos justamente enquanto discípulos e imitadores do Senhor por causa do seu insuperável amor pelo seu rei e mestre. Queira o céu que também nós possamos ser companheiros e condiscípulos deles! O centurião, então, vendo a contenda provocada pelos Judeus, fez colocar o cadáver no meio, segundo o seu hábito ordenou queimá-lo. |
Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica, Livro IV 15,1-43 |